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Crítica: Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 1

Introdução - A jornada

Desde o início da literatura mundial, as gerações são agraciadas com a saga de algum herói. Com o surgimento do cinema, novos meios de se contar histórias surgiram e, assim, novas maneiras de se relatar a trajetória de algum “escolhido”, “salvador”, “messias”. Nos últimos 30 anos, o nome do herói foi Luke Skywalker. Fazendo valer da fórmula de milênios, George Lucas criou a saga Star Wars e movimentou fãs do mundo todo com os ensinamentos do mestre Yoda e as lições que uma história assim pode trazer. Toda essa introdução foi pra dizer que isso pode ter mudado. Os jovens de hoje podem até conhecer a história do Cavaleiro Jedi, porém, o herói da nova geração que irá influenciar (e já influencia) escritores, roteiristas e diretores é Harry Potter.


Começou como uma história de fantasia como outra qualquer. O primeiro livro pode até ser considerado bobinho quando comparado com o que a autora J.K. Rowlig iria lançar nos anos seguintes. Se foi esperteza pra manter os leitores curiosos ou mero desenvolvimento da história, não faz diferença. O que importa é que conforme Potter crescia nos livros, seus fãs o acompanhavam. Fases da vida do pequeno bruxo se “confundem” com o que quem lia os livros estava passando, iria ou simplesmente já passara. A identificação é imediata. E assim, se criou um dos maiores fenômenos literários do começo do século 21.


Não foi surpresa alguma quando as adaptações para o cinema compartilhavam do mesmo sucesso e estrutura. Os dois primeiros filmes, A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta, de Chris Columbus, foram exemplos perfeitos de um filme família. Os personagens principais, Harry, Ron e Hermione sempre triunfavam contra um mal que não se podia tocar, mas todos sabiam estar pronto para o ataque. Lord Voldermort, o temível vilão que deixou Potter órfão e aterrorizou a comunidade bruxa não tinha como se materializar e era como uma sombra do passado que vez ou outra tentava atormentar a paz e o equilíbrio.


Então, tudo começou a mudar. A partir de O Prisioneiro de Azkaban, dirigido com muita competência e criatividade por Alfonso Cuarón, os três protagonistas começaram a crescer. Responsabilidades maiores começaram a surgir e, pela primeira vez, atos começam a ter consequências. O tom sombrio e o início do abandono dos temas musicais criados por John Williams para as produções anteriores marcam agora a evolução da cinessérie. No quarto filme, O Cálice de Fogo, o cineasta Mike Newell cria uma mescla do estilo aventuresco de Columbus com a mão mais européia de Cuarón, valorizando os sentimentos e as descobertas da recém chegada adolescência.


Surge no filme seguinte, A Ordem da Fênix, aquele cuja tarefa seria a mais difícil. David Yates recém-saído da TV, com seus documentários para a BBC, não parecia ser a escolha mais óbvia para dar continuidade à saga de Harry Potter. Sua estréia foi ingrata. Este é o livro que os fãs menos gostam por seu longo número de páginas que não levam à muita coisa a não ser a metáfora para o início das perdas a qual todos passam. Sua continuação mantém a mão de Yates, agora mais confiante em criar uma obra que seja mais cinema e menos literatura. O roteirista Steve Kloves também parece ter adquirido mais liberdade para inserir em O Enigma do Príncipe, cenas que não estão no livro, mas que funcionam dentro de um filme. Um bom exemplo é sua sequência de abertura, mostrando ataques dos Comensais da Morte, servos de Voldemort, agora, finalmente de volta e que não parece ter problemas em anunciar seu poder. No livro, um diálogo entre o primeiro-ministro britânico e o ministro da magia inicia a história, e a tensão entre ambos já ajuda a prever o tom que o sexto volume terá. Apesar de muito bem escrito, não funcionaria plenamente na tela grande. A cena de ação cumpre muito bem o seu papel.


A história agora passa a mostrar Potter lidando com perdas palpáveis. Entes queridos, seu mestre e a vida de outrora, que ele já desconfiava estar com os dias contados, se findam, e Harry finalmente adquire confiança e maturidade para se tornar o que todos esperam que se torne.


A saga finalmente teria um desfecho e, numa jogada de marketing que favorece a obra, a Warner, dona dos direitos do personagem, resolveu dividir o que seria o sétimo e último filme em duas produções. E é aí que David Yates finalmente mostra a que veio.


O começo do fim


As Relíquias da Morte é um filme incompleto. Ele não termina e uma análise agora pode até soar estranha. Porém, é de se comentar como o diretor se sai ao começar a cumprir sua tarefa. A primeira cena deste sétimo Harry Potter marca o tom. Em uma renião na mansão dos Malfoy, Lord Voldemort discute as novidades a respeito do crescimento do seu poder. Enquanto isso, uma bruxa maltrapilha e ensanguentada flutua, vítima do que parece ter sido uma tortura terrível. Logo se revela que a personagem é uma professora de Hogwarts que segundo o vilão, simpatiza e encoraja a união de bruxos com trouxas. Finalmente a história começa a lidar com preconceito, perseguição e com os fantasmas históricos britânicos, criados graças à Dama de Ferro, Margareth Thatcher. Impossível não sentir um nó na garganta, mais a frente no filme, quando no Ministério da Magia, agora controlado por Comensais, são impressos panfletos preconceituosos contra os “sangue-ruins”. É uma clara referência a obra de George Orwell, “1984”, escrita nos anos 40, muito antes de Thatcher, mas que já demonstra no povo do Velho Continente, um medo enorme de que toda aquela sisuda pompa se transformasse em um governo totalitário e alienador.


Voltando ao começo do filme, Potter precisa sair da casa de seus tios pois irá atingir a maioridade e a proteção de sua mãe irá cessar. Na sequência da fuga, a primeira baixa é de uma representatividade enorme. Edwiges, a coruja que acompanhou o bruxo em seus anos de Hogwarts, é morta por um dos seguidores de Voldemort. É Harry, vendo ir embora, a última ligação com sua infância. A vida adulta finalmente chegou e ela não é bonita.


Ao contrário do que se espera, agora a história mostra que tragédias existem, que amizades podem ser colocadas em dúvida e que as coisas dão errado quando você começa a caminhar com as próprias pernas. Mas nada é motivo para desistir. Essa mensagem fica muito clara, do início ao fim da projeção, com Harry sabendo que está seguindo para um missão suicida a cada novo plano, mas que sua posição como “O Escolhido” o impede de simplesmente desistir. Como Rony diz em determinado momento, não é ele que está em jogo, mas a sobrevivência da comunidade bruxa. Se ele falhar, tudo irá desmoronar.


Outra evolução clara representada em As Relíquias da Morte está na atuação do trio. Daniel Radcliffe teve seus dias de teatro e isso ajudou na composição de seu personagem. Emma Watson continua carismática, mas é Rupert Grint que cresce como ator. Embora ainda se faça valer de suas caras e bocas, Rony se vê, em alguns momentos em uma torrente de sentimentos, uma mistura de amor, ódio, inveja e raiva que poucos atores, incluindo mais velhos, conseguem representar. Aliás, falando em elenco, é notável a força dos coadjuvantes, sempre interpretados por grandes nomes, que trazem à série uma certa credibilidade.


A vantagem da divisão do sétimo livro em dois filmes fica evidente no cuidado que se teve ao adaptar a história. Pouquíssimas passagens foram alteradas ou removidas e, talvez, nenhum fã poderia esperar por uma adaptação tão fiel. O nível emocional da trama foi mantido tal qual em sua contraparte literária e só traz mais força ao filme, que graças a direção acertada de David Yates consegue algo que só O Prisioneiro de Azkaban havia alcançado até agora: ser mais do que uma simples transposição e se tornar uma obra cinematográfica de qualidade.


O diretor é muito feliz nos momentos em que não dizer nada, diz tudo. A sequência em que Harry tira Hermione para dançar, apenas para animar a amiga é de uma beleza singular. Talvez seja o melhor exemplo de como um momento imagético pode ser muito mais efetivo que 3 páginas de diálogo. Outras sutilezas na interpretação dos protagonistas são muito bem-vindas e a edição de As Relíquias da Morte é extremamente elegante, sem levar ao espectador mais tensão do que ele precisa para acompanhar os fatos. Intercalando cortes secos com transições em fade, o editor Mark Day consegue dar ao filme um ritmo muito próprio que se completa com a trilha de Alexandre Desplat, pesada, sombria e até minimalista, quando deve ser.


Outro aspecto da produção que merece destaque é a direção de fotografia de Eduardo Serra. Como desta vez a história não se concentra mais apenas em lugares fechados, o filme pedia uma alteração de paleta de cores e uma cinematografia até mais naturalista. As belas paisagens por onde Harry, Ron e Hermione se escondem são filmadas de forma realista, quase documental por Serra, português acostumado a filmes europeus, que já teve seus momentos em Hollywood com Corpo Fechado e Diamante de Sangue. Até por isso, evita as tomadas com câmera na mão, usando-as apenas em momentos de maior tensão. A maioria das sequências são filmadas sem pressa, com a câmera parada, e o melhor, fazendo o filme ter um ritmo diferenciado sem parecer lento. Mais um ponto positivo para a edição.


O maior problema de As Relíquias da Morte, no entanto, é não ter fim. A espera até a metade de 2011 será aterradora. Mas, se Yates acertou a mão até aqui, dificilmente cometerá algum erro na segunda parte, já que tudo foi gravado como se fosse uma obra só. Pelo menos pra uma coisa, não há dúvida. A juventude que passou os últimos 10 anos acompanhando a enorme aventura que foi a cinessérie Harry Potter já definiu o seu herói. E, apesar de ser bruxo e ter poderes mágicos, seja, talvez, o que enfrentou os maiores desafios que alguém pode enfrentar na vida, que não são ligados a derrotar um vilão terrível, mas sim a encarar responsabilidades, e perceber, como Harry, como a infância, às vezes tão apressada em acabar pra dar lugar à maioridade, pode parecer tão boa, quando comparada com as perdas e consequências da vida adulta.

Continua...
 
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