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Balão de Pensamento: Dennis O'Neil e a relevância do povo de pele laranja

No final da década de 60 e começo dos anos 70, o mundo passava por mudanças. Velhos conceitos eram repensados e a juventude mostrava um espírito contestador, pronta para pisotear convenções ultrapassadas. A busca por liberdade de expressão e igualdade foi muito além dos jovens hippies que lotaram Woodstock. Além da música, o cinema, a literatura e várias expressões artíticas foram atingidas em cheio por uma ideologia de mudança. E numa época em que os quadrinhos, mais do que nunca, eram vistos com maus olhos, graças ao impiedoso livro Seduction of the Innocent do psiquiatra Frederic Wertham, jovens escritores começaram a colocar seus ideiais de contestação nas histórias, fazendo com que os super-heróis, símbolos dos valores americanos, finalmente se tornassem relevantes para a formação de leitores que em alguns anos seriam a base daquele país.

Dentre os roteiristas responsáveis por mostrar que quadrinhos poderiam ser mais do que uma leitura escapista, está Dennis O'Neil. Embora tenha começado sua carreira na Marvel, ao impressionar Stan Lee com suas histórias, foi na DC Comics que O'Neil iniciou o que se estenderia até os anos 80 como uma revolução nas HQs, seguida por outros autores como Alan Moore, Mike Grell, Howard Chaykin e Neil Gaiman. Antes dele, Will Eisner já havia elevado os quadrinhos a um patamar mais artístico, mas não era mainstream.

O'Neil esteve à frente de Mulher-Maravilha e Liga da Justiça, mas foi com Arqueiro Verde que mostrou a que veio. Havia anos, o personagem sempre foi taxado de Batman de segunda e o roteirista mudou isso, deixando-o mais ideológico, funcionando de forma muito mais contestadora do que como um simples defensor do crime. Depois, no começo dos anos 70, uniu o vigilante esmeralda com o Lanterna Verde, numa das séries mais influentes dos quadrinhos modernos. O título Lanterna Verde/Arqueiro Verde colocava os heróis viajando pela América e fazendo uma análise das transformações pelas quais o país passava naquele momento. Desigualdade social, direitos femininos, racismo. Tudo discutido de forma muito madura pra época. Foi nesta revista que O'Neil provavelmente escreveu as linhas mais importantes de sua carreira. Logo na primeira edição, um negro conversa com o Lanterna Verde e o diálogo é um tapa na cara de anos de quadrinhos voltados para a mera diversão.

"Eu já li sobre você... como você trabalha para os de pele azul... e como você esteve num planeta qualquer ajudando uns caras de pele laranja... e você fez bastante também pelos de pele roxa! Só sei de uma cor de pele que você nunca deu atenção! Os de pele negra! Queria saber... por quê? Responde essa, Sr. Lanterna Verde!"

O Lanterna abaixa a cabeça e não tem como responder essa pergunta.

A partir daí, o autor juntou a ideia do Lanterna como policial incorruptível unindo forças com um personagem de ideais de esquerda, num contexto realista, para mostrar aos jovens que a América não era apenas a terra de oportunidades que a mídia vendia. Foi nesse título que o Arqueiro enfrentou um problema maior que qualquer supervilão: o vício pelas drogas de seu parceiro mirim Ricardito. Na introdução que faz ao encadernado Grandes Clássicos DC - Lanterna Verde e Arqueiro Verde, publicado em 2006 no Brasil pela Panini, O'Neil explica que suas intenções não eram de dar soluções, mas mostrar que os problemas existiam. Não deixar a juventude cair na apatia e na ignorância, como aconteceu com as gerações anteriores.

Depois, O'Neil recebeu a tarefa de reformular o Batman tornando-o novamente o personagem sombrio que sempre foi. Há uma grande confusão com o Homem-Morcego.Muitos atribuem a Frank Miller a transformação do personagem, mas foi O'Neil quem começou isso. Batman fora transformado em piada graças ao seriado dos anos sessenta e era preciso mostrar que o personagem, um dos mais importantes do universo DC, não era aquela figura caricata. Junto com o desenhista Neil Adams (também colaborador na série Lanterna/Arqueiro), criou personagens como Ra's Al Ghul e Thália e colocou o vigilante de Gotham em situações típicas de um bom filme policial.


Nos anos 80, a DC promoveu uma grande saga, a Crise nas Infinitas Terras, que serviu para reorganizar seu universo e simplificar as coisas para os novos leitores que surgiam. Depois da Crise, os maiores personagens da editora tiveram suas origens recontadas e sua atuação repensada. E outros heróis menores também ganharam sua chance. Foi o caso do Questão, vigilante adquirido pela DC após da compra da Charlton Comics. Inspiração para o Rorshchach de Watchmen, o personagem sem rosto nunca foi muito popular. E O'Neil, que vira seu conceito de tornar heróis relevantes sumir ao longo dos anos, foi o nome indicado para reformular o Questão.

Pra isso, o mostra em sua cidade de atuação, Hub City, um lugar mais sujo e decadente que Gotham. Era a chance que o autor precisava para voltar à velhos temas. Interferência da CIA em problemas no estrangeiro, corrupção e uma aula de marketing político, tudo nas páginas de uma revista que agora viria com o selo de "Sugerido para o público adulto". O Questão de O'Neil também desenvolve ao longo da série, uma filosofia zen e questiona seus próprios atos, fazendo jus ao seu nome.

É num arco de histórias do Questão que o roteirista, mais uma vez, cria um diálogo memorável que atinge a paranóia ideológica americana. Uma conversa entre a candidata a prefeitura de Hub City e o atual prefeito, seu marido:

"-Vaca Comunista!

-Como é?

-As coisas que você diz... como pode dizer isso? Isso é... comunismo!

-Sim... e Thomas Jefferson também era comunista. Homens como você chamam comunismo tudo que não entendem. Assim não precisam pensar. Claro que é triste que não entenda o que eu defendo... conceitos como responsabilidade, honra, justiça. Ajudar os necessitados, os desamparados..."

Nessa época, outros títulos ajudaram a DC a criar um selo adulto que depois viria a se chamar Vertigo. O Arqueiro Verde foi um deles, nas mãos do novato Mike Grell, que seguindo a cartilha de O'Neil, também discutia temas atuais e o mais interessante, colocava o personagem usando cada vez menos seu uniforme.

Durante a década de 90, Dennis O'Neil assumiu o posto de editor da DC e foi responsável por definir o Batman para as futuras gerações como o personagem que é hoje.

Sem as discussões políticas e filosóficas, o roteirista também é muito competente, mas foi na época em que tornou os quadrinhos relevantes, que deixou sua marca na arte sequencial de se contar histórias, mostrando ao mundo que até seus maiores heróis precisavam mudar.

Dicas de leitura:

Grandes Clássicos DC - Lanterna Verde/Arqueiro Verde - Ed. Panini Comics

Questão - Zen e a Arte da Violência - Ed. Panini Comics

http://en.wikipedia.org/wiki/Dennis_O%27Neil

Continua...
 
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