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Crítica: O Espião Que Sabia Demais

Esta crítica contém alguns elementos da trama. Se você se incomoda com alguns spoilers, leia apenas depois de ter assistido ao filme.

Para John Le Carré, autor de vários livros de espionagem, o Serviço Secreto é tão burocrático como qualquer outro departamento público inglês. Ele provavelmente está certo, já que fez parte do MI6 na juventude e escreve com muita propriedade sobre os efeitos que a vida de espião pode ter sobre as pessoas. A maioria dos filmes que adaptam sua obra é bem sucedida em mostrar isso, mas talvez nenhum o fez com tanta competência quanto O Espião Que Sabia Demais, do diretor sueco Tomas Alfredson, que estreou em circuito limitado no Brasil neste final de semana. E isso vindo do escritor cuja obra deu origem a O Espião Que Saiu do Frio, A Casa da Rússia, O Alfaiate do Panamá e O Jardineiro Fiel.

Logo na introdução aos personagens, o espectador é apresentado a um cenário nada convencional pra quem pensa que o mundo da espionagem é próximo ao mostrado nas cinesséries de James Bond e Missão: Impossível. Salas esfumaçadas e mofadas, funcionários em ternos risca de giz e murais com avisos corporativos não são nada glamourosos. Mas o mundo real, principalmente o da época da Guerra Fria onde a trama se situa, nunca é. Além disso, George Smiley, o protagonista vivido por Gary Oldman, que começa o filme deixando o Serviço Secreto, é o mais incomum dos "heróis" com sua idade avançada, fora de forma, cabelos grisalhos e óculos de tamanho considerável. Forçado a voltar, depois de uma desastrosa operação que tentava descobrir a identidade de um possível agente duplo, Smiley precisa seguir as pistas deixadas por seu mentor, Control (John Hurt), para desvendar uma complicada trama que envolve um espião interpretado por Tom Hardy e a cúpula do Circus, apelido do MI6, formada por Bill Haydon (Colin Firth), Roy Bland (Ciarán Hinds), Toby Esterhase (David Dencik) e Percy Alleline (Toby Jones). Além disso, há também um mistério a respeito do agente morto na missão que acabou mal, vivido por Mark Strong. Para conseguir resolver tudo isso, Smiley contará com a ajuda de Peter Guillam (Benedict Cumberbatch) e de um policial aposentado, Mendel (Roger Lloyd-Pack). São vários personagens e cada um é fundamental pra trama, o que exige atenção e paciência do público, já que boa parte da "ação" é baseada em diálogos.

Mas isso não torna o filme arrastado, de forma alguma. O roteiro de Bridget O'Connor e Peter Straughan sabe muito bem fazer uso justamente de toda a conversa pra ditar o ritmo. Claro que isso não adiantaria muito sem uma direção firme e Alfredson proporciona isso, com a competência que já havia mostrado em seu Deixe Ela Entrar. Aliás, do filme sueco vem também o diretor de fotografia, Hoyte van Hoytema, que deu ao longa uma textura granulada que serve tanto para emular a sensação dos anos 70 e de um filme daquela época quanto para dizer ao espectador que esse não é um mundo onde tudo é simples, claro e objetivo. Outra escolha interessante na área técnica foi o uso de lentes longas para filmar os personagens à distância, servindo para colaborar com o clima de paranóia que acompanha aqueles que, ironicamente, vivem da observação de outros.

Com um elenco recheado de astros britânicos, O Espião Que Sabia Demais tem na interpretação de Smiley seu maior destaque, assim como uma grande surpresa. Não que Gary Oldman não seja um bom ator, mas ele não está acostumado a personagens tão serenos e contidos. O resultado é mais do que satisfatório, pois além de colocar sua habilidade de interpretação a toda prova, ainda consegue transmitir todos os dilemas do protagonista, bem como sua inteligência e frieza, demonstradas numa divertida cena dentro de um carro. Enquanto seus ajudantes, acostumados à força bruta tentam espantar uma mosca nos bancos da frente, Smiley apenas observa, esperando que ela se aproxime do vidro para que possa abri-lo, fazendo-a sair do veículo. É exatamente essa a atitude do personagem durante todo o filme. Ele junta informações, busca pistas e aguarda o momento certo para fazer com que o agente duplo revele a si mesmo, evitando os danos colaterais de um confronto direto.

O texto também é brilhante ao abordar a trama como um estudo de personagem, mostrando os "traumas" ou consequências da espionagem. A traição vem pelo tédio ou pela falta de reconhecimento por serviços prestados. Todos ali parecem carregar o mundo em suas costas, muitos diriam até que esse é o motivo de terem os ombros caídos. Mas isso também pode vir da chateação do trabalho, dos papéis a serem preenchidos, das requisições por orçamento que nunca são aceitas ou da falta de um ambiente familiar, representado aqui de três formas: a distante esposa de Smiley, a história contada pelo personagem de Tom Hardy e a vida privada de Guillam.

O diretor Tomas Alfredson também mostra que entende de estímulos visuais e várias sequências são exemplo disso, principalmente as que usam reflexos do mundo exterior quando algum personagem é visto através de uma janela ou vidraça. Boa parte do filme se passa em ambientes fechados e esses takes denotam o sentimento de clausura desses agentes secretos. Apenas em um momento o diretor usa um elemento que além de didático já é um tanto manjado ao mostrar cada um dos suspeitos de traição representado por uma peça de xadrez. Além de parecer desenhar pro espectador a intenção da cena, a conexão com o jogo de tabuleiro é completamente descartável, uma vez que os prováveis traidores já são associados à outra coisa, o "tinker, tailor, soldier, spy" do título original. A decisão, embora pobre, não compromete o longa.

Todo o brilhantismo da produção, no entanto, não prepara o espectador para seu desfecho, que pode ser considerado um dos grandes momentos do cinema recente, graças a escolha incomum da trilha sonora e do encerramento do arco de Smiley. La Mer, interpretada alegremente por Julio Iglesias, é o contraponto perfeito à atmosfera cinza e triste de O Espião Que Sabia Demais. E faz com que o longa termine da forma que merece: aplaudido. De pé, se possível.
Continua...
 
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